by Alex Bretas, Brazil
Oct 19, 2018
Acabo de voltar da edição de 2018 do Encontro Global de Ecoversidades, ou Ecoversities Global Gathering, em Udaipur, na Índia. Em seis dias, foi a experiência intercultural mais intensa que já vivi. A Aliança de Ecoversidades(Ecoversities Alliance) é um espaço de costura de perspectivas diversas no sentido de reimaginar a aprendizagem de pessoas adultas.
A rede surgiu com dois objetivos: apontar críticas ao sistema educacional dominante e cocriar projetos alternativos com foco na transformação da educação superior. Em 2015, Tamera, uma ecovila portuguesa, sediou uma reunião com 55 pessoas de 23 nacionalidades, um esforço de articulação liderado inicialmente por Kelly Teamey, Udi Mandel e Manish Jain.
O brasileiro Udi e Kelly, depois da desilusão com o trabalho na universidade, saíram em busca de iniciativas educacionais inovadoras ao redor do mundo. Ao conhecerem Manish, cofundador do movimento Shikshantar e da Swaraj University na Índia, perceberam que havia a possibilidade de criar uma aliança global que conectasse pessoas engajadas na transformação da educação de “nível superior”. Depois de Portugal, houve mais um encontro na Costa Rica em 2017, na Earth University.
Uma premissa importante da rede é o reconhecimento dos padrões que carregamos por conta da cultura escolarizada em que vivemos. Visões de mundo, formas de pensar, formas de sentir, comportamentos e vontades são largamente influenciados pelo fato de termos passado anos de nossas vidas na escola. Mesmo quem é desescolarizado sente os impactos dessa “colonização de pensamentos”. Não há para onde fugir porque a sociedade tornou-se escolarizada, como acreditava Ivan Illich.
Contudo, como se vê no convite para o encontro em Udaipur:
Há uma constelação emergente de eco-versidades — pessoas e comunidades reclamando seus sistemas de conhecimento local e práticas de aprendizagem para restaurar e reprojetar processos educacionais significativos e relevantes para o chamado dos nossos tempos, que cultivam novas histórias e possibilidades e que reconectam e regeneram ecossistemas ecológicos, sociais, econômicos e culturais no espírito de “volta para casa”.
“Volta para casa”, ao meu ver, significa resgatar a essência do espírito humano perdida em milênios de opressão e controle. Culturalmente, a maioria de nós não aprendeu a resistir, criar novas alternativas, cooperar e cultivar autonomia. Precisamos de lugares, projetos e de uma teia de relações que nos ajude a aprender tudo isso. Que nos ensine a cuidar de nós, das outras pessoas e do planeta. As ecoversidades surgem com esse propósito.
Quem estava lá
Representantes de todos os continentes, 71 pessoas compareceram ao encontro na Índia. Dentre esse grupo, destaque para a “delegação” brasileira, que contou com seis pessoas além de Udi, que saiu do Brasil aos 11 anos. Fui ao evento com a missão de acompanhar a Luana e a Mariana, duas jovens de 15 anos que estudam no Projeto Âncora, que atenderam a um convite de Manish para ir à conferência por conta de seu projeto de universidade livre.
Algumas pessoas que tocam iniciativas que conheço há algum tempo estavam lá, como Alan Webb, do Open Master’s (EUA), e Traian Brumă, da Universidade Alternativa (Romênia). Além de dar um abraço nos amigos, pude conhecer dezenas de outros projetos muito interessantes. Alguns que explorei um pouco mais são:
Universidad Swaraj (Índia)
Universidade na Índia com um programa de aprendizagem autodirigida de dois anos com foco no resgate de conhecimentos e da cultura locais.
YIP, International Youth Initiative Program (Suécia)
Programa imersivo de desenvolvimento para jovens inspirado na antroposofia.
No Bullshit Academy (Holanda)
Um workshop de desenvolvimento humano de um dia para transformar “bullshit” em fertilizante para o amanhã. Uma boa metáfora para nos lembrar do que realmente importa.
Social Innovation Academy (Uganda)
Formação para jovens de orfanatos ou em situação de rua e refugiados com foco em empreendedorismo social.
Taghmees (Jordânia)
Iniciativa baseada no conceito de “cozinhas sociais”, isto é, conversas sobre temas profundos regadas a boa comida em locais públicos.
Universidad de la Tierra (México)
Comunidade de aprendizagem autogerida focada no tema da convivialidade.
Algumas outras iniciativas que estiveram presentes no encontro são:
- Blackfoot Digital Library, Phenology Studies (Canadá)
- Cairo Institute of Liberal Arts and Sciences (Egito)
- Knowmads (Holanda)
- Sadhana Forest University of Compassion, Auroville (Índia)
- La Universidad Free Home (Itália)
- School of Engaged Art, Chto Delat (Rússia)
- Findhorn College (Escócia)
No Brasil, além do Helianthus, projeto da Luana, da Mariana e do Enzo, conheci também o This is not the truth, da Camilla Cardoso, a investigação do Dino Siwek sobre como podemos lidar com nossos espaços de dor internos e o livro “Seja a mudança” do Leandro Uchoas sobre como o pensamento de Gandhi pode ser aplicado no Brasil. Outras iniciativas brasileiras como a Escola Popular de Comunicação Crítica no Rio de Janeiro e a Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, também foram convidadas para o encontro, mas não enviaram representantes.
O que mais me impactou
O que fica de um encontro como o de Udaipur é sentido no corpo, na pele mesmo. Uma das marcas mais intensas da escolarização é privilegiar a cabeça em detrimento do coração, das mãos e do espírito. Formamos intelectuais capazes de fazer as amarrações teóricas mais complexas, mas que sofrem de depressão e ansiedade. Falta sentido e equilíbrio. Em linha com a postura de resistência da aliança de ecoversidades em relação a esse cenário desolador, um conjunto de experiências que priorizam o sentir e a reconexão consigo e com o mundo foram propostas. As ancestralidades de diversos povos tradicionais — indianos, havaianos, mexicanos, comunidades indígenas de vários localidades — deram o tom dos ritos e vivências ofertadas.
Se, por um lado, o encontro buscava articular universidades contra-hegemônicas, por outro, ele mesmo já era uma espécie de universidade para as pessoas presentes. Nesse espaço, praticamos uma aprendizagem inter(trans)cultural e interativa.
Os rituais, janelas para o religare, são as maneiras que a humanidade encontrou para se reconectar com o essencial. Durante o encontro, vivemos ritos de culturas diversas que utilizavam os elementos naturais (água, fogo, terra e ar) em processos de purificação, celebração, reflexão e apreciação. Foi incrível perceber como os rituais serviam para potencializar nosso estado de presença. Em uma noite antes do jantar, as pessoas que organizavam o encontro lavaram e secaram nossas mãos e prepararam uma fila de abraços calorosos. As mesas do jantar brilhavam à luz de velas. Ao comer, conversei com um ex-Khoji da Swaraj (Khoji é o nome que se dá aos estudantes da universidade e significa explorador ou exploradora) e me senti fortemente conectado a ele. Mastiguei com prazer cada palavra na nossa conversa sobre sua trajetória até chegar ali. Os rituais têm poder.
Cada pessoa viveu seu próprio itinerário de aprendizagem durante os dias em Udaipur. Existiam atividades planejadas durante o dia, mas o clima era sempre de Open Space, isto é, havia um ar de liberdade para ir e vir. Havia também espaço para o emergente e o inesperado. Dias antes do início do encontro, um convite do time organizador fez com que algumas pessoas participantes se reunissem para cocriar o planejamento do evento. O design team se reunia todos os dias da conferência para replanejar e desenhar o fluxo dos dias seguintes.
A estrutura foi intencionalmente pensada para ter vários espaços que seriam “povoados” com ideias do grupo. Certos momentos eram mais planejados e buscavam reunir todo mundo, como as cerimônias de abertura e de encerramento e a assembleia para decidir os rumos da aliança, por exemplo. Outros eram abertos às propostas do grupo mediante inscrições prévias. E havia ainda espaços de interação mais livre como o café da manhã, o jantar e as fogueiras à noite. Penso que esse modelo livre e semiestruturado de Desconferência (Unconference) pode inspirar muitas iniciativas de aprendizagem por aí.
Talvez a educação do futuro precise de menos conhecimento e mais conexão.
Saiba mais
O site da Aliança foi lançado recentemente e contém os princípios da rede, publicações e um catálogo das ecoversidades participantes.
Acesse: http://ecoversities.org.
Agradeço imensamente às pessoas que fizeram doações para tornar a viagem possível. Em breve, anunciaremos um encontro em São Paulo para compartilhar aprendizados 🙂